O processo (sem adjetivos) é uma garantia de liberdade do indivíduo. É garantia porque tutela o exercício de um direito fundamental, nesse caso, a liberdade, os bens, etc. Para a vertente do garantismo processual, o fato de que o processo se situa na Constituição Federal como uma garantia de liberdade (Dos direitos e deveres individuais e coletivos), não de jurisdição (não está na Organização do Estado — título III), diz muito. Este texto busca explicar o processo a partir dessa perspectiva, a qual, conforme entende-se, melhor se alinha com as disposições constitucionais.

A Constituição Federal preconiza, em seu art. 5º, LIV, que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. Nesse sentido é que, com Eduardo José da Fonseca Costa, entende-se que o processo é coisa para as partes, não da jurisdição ou das partes, tanto é que o procedimento civil brasileiro dispõe, no art. 2º do Código de Processo Civil, que o processo começa por iniciativa da parte e se desenvolve por impulso oficial, salvo as exceções previstas em lei. 

Na foto: Ministros Luiz Fux (do STF) e Bruno Dantas (do TCU), com o Senador Renan Calheiros e o Deputado Henrique Eduardo Alves, em 26.3.2014. Fux e Bruno Dantas fizeram parte da Comissão de Juristas que elaborou o anteprojeto do CPC de 2015. 

O processo não é um instrumento a serviço da jurisdição, pois quando inicia a instrumentalidade (como instrumento de poder), cessa a tutela dos direitos fundamentais (aliás, é direito processual, não jurisdicional)². O processo não está também a serviço do direito material. Sustenta Eduardo José da Fonseca Costa que "[...] o que está a serviço da realização do direito material é a jurisdição, não o processo: ao processo cabe 'apenas' cuidar para que essa realização não deslize em abusividades"³. Portanto, processo é garantia de estruturação e funcionalidade previstos constitucionalmente: importam (muito!) as regras do jogo, porque, aqui, forma é garantia.

O processo nasce da necessidade de existir um terceiro imparcial para resolver um litígio, que é normal em uma sociedade. Portanto, a evolução civilizatória de proibição à realização da justiça pelas próprias mãos (e a necessidade do terceiro imparcial) deu origem à jurisdição. Nas palavras de Araken de Assis,

[...] a única modalidade socialmente eficiente para resolver o conflito reside na intervenção de um terceiro imparcial. O Estado assumiu essa tarefa essencial, autêntico monopólio estatal, prestando à sociedade relevante serviço público. A heterocomposição estatal enseja, em princípio, a desejável correspondência entre o desfecho do litígio e a pauta de conduta observada voluntariamente nas relações sadias, a universalização do mecanismo e, principalmente, a sua obrigatoriedade, através de veto quase absoluto à autotutela. Essa atividade fundamental do Estado chama-se de jurisdição⁴.

É pressuposto do entendimento de processo o que seja a jurisdição, razão pela qual é tão oportuno ter sempre o Código ao lado. O legislador brasileiro esclarece, nos arts. 3º e 16, respectivamente, do CPC, que não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito, e que a jurisdição civil é exercida pelos juízes e pelos tribunais em todo o território nacional, nos termos e disposições do Código. 

Novamente é importante destacar que o Judiciário, responsável pela jurisdição, não pode se negar a resolver um conflito quando chamado, e nenhuma lesão a direito pode ser excluída da apreciação do Poder Judiciário (trata-se de disposição constitucional, art. 5º, XXXV, CF/88). Mesmo sendo um órgão estatal, ele é independente, não serve ao Estado, por isso, pode ser um terceiro imparcial para julgar uma causa de um indivíduo contra o próprio Estado. Formalmente, a maneira de separar o juiz do Estado é justamente atribuindo-lhe competência para julgar as ações dos outros poderes, como uma função especializada dentro das funções do Estado.

O processo, enquanto garantia destinada a realizar os direitos fundamentais previstos constitucionalmente, "transcende aos interesses concretos dos litigantes porventura individualizados em dado processo”. Conhecer o Código de Processo Civil é também importante para trabalhar com outras áreas, pois, como dispõe em seu art. 15, na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições do CPC lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente.

Cabe ao processo defender a Constituição, seus princípios e a eficácia prática dos direitos fundamentais. Para isso, é necessário uma atividade jurisdicional previsível e segura. A causa da jurisdição é a lide, que se revela no processo por meio de "pontos de fato ou de direito que os litigantes controvertem perante o juiz"⁶.

 A tutela jurídica realizada através do processo visa à realização dos direitos positivados ou reconhecidos no ordenamento. Por isso, os litigantes esperam do Estado certas providências, tais como: 

(a) a formulação de uma regra concreta, que decida qual deles tem razão; (b) a atuação prática deste comando vinculativo, caso o vencido não o cumpra voluntariamente; (c) e, em casos excepcionais, a asseguração ou satisfação imediata desses objetivos ou de algum direito ameaçado de perecimento. Correspondem tais expectativas dos figurantes do processo às funções de cognição, de execução e cautelar⁷.

O processo se origina da pretensão à tutela jurídica do autor, veiculando de forma neutra a sua alegação perante o réu. Essa alegação e a providência reclamada ao Poder Judiciário conformam o mérito ou o objeto litigioso do processo. O que diferencia um processo do outro é conhecido no exame hipotético do mérito.

A função do processo depende do mérito, da aspiração do autor perante o réu, da causa de pedir e do pedido. Conforme o art. 337, § 2º, do CPC, uma ação é idêntica a outra quando possui as mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido. 

O processo visa à formulação e à atuação prática da norma concreta a disciplinar determinada situação. A formulação da norma jurídica concreta é o processo de conhecimento ou cognição, e o segundo aspecto, da atuação prática, é o processo de execução. Muitas vezes, eles acontecem simultaneamente, se conjugando no mesmo processo. Conforme José Carlos Barbosa Moreira esclarece, “a situação cuja disciplina há de ser fixada pelo órgão de jurisdição é a que se lhe submete através do pedido. Acolhendo ou rejeitando o pedido, formula o órgão de jurisdição a norma jurídica concreta aplicável à situação. Ao fazê-lo, resolve o mérito da causa, por meio de uma sentença”⁸.

O processo de conhecimento termina apenas quando a sentença de mérito transita em julgado — i.e., quando não se pode impugnar mediante recurso ou revisão ex vi legis. Explicam Nelson Nery Junior e Rosa Maria Andrade Nery que 

Transitada em julgado a sentença de mérito, as partes ficam impossibilitadas de alegar qualquer outra questão relacionada com a lide sobre a qual pesa a autoridade da coisa julgada. A norma reputa repelidas todas as alegações que as partes poderiam ter feito na petição inicial e contestação a respeito da lide e não o fizeram. Isto quer significar que não se admite a propositura de nova demanda para rediscutir a lide, com base em novas alegações.

 Exceções à autoridade da coisa julgada serão discutidas durante o desenvolvimento do projeto.

 

1. Direito material (ou substancial) e processual (ou formal)

O direito material (ou substancial) dispõe o conteúdo dos direitos, que dizem respeito a fatos jurídicos, bens, etc. Esse direito material se encontra, por exemplo, no Código Civil, que descreve os direitos que os indivíduos podem requerer em juízo (ex., art. 11 do CC/2002, o direito à personalidade), e que seu procedimento é regulado pelo Direito Processual Civil. O procedimento civil é uma garantia assecuratória dos direitos materiais dispostos no Código Civil, que dispõe de ferramentas para tutelar e assegurar o exercício dos direitos.

 

2. Lei processual no tempo e espaço

2. 1 No tempo

Art. 14 do CPC: A norma processual não retroagirá e será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada.

O Direito Processual segue o adágio tempus regit actum, de tal forma que o processo é uma série de atos e cada uma deve ser observada separadamente a fim de determinar qual lei o regerá.

 

2.2 No espaço

Art. 13 do CPC: A jurisdição civil será regida pelas normas processuais brasileiras, ressalvadas as disposições específicas previstas em tratados, convenções ou acordos internacionais de que o Brasil seja parte.

De acordo com o referido artigo, as leis processuais valem para todo o território nacional (princípio da territorialidade), não obstante isso, as ressalvas que dizem respeito aos tratados, convenções, etc., só reiteram que esses já constam no ordenamento (pois quando o país faz um acordo específico, ele passa a integrar o ordenamento). Quando incorporados, os tratados têm a mesma hierarquia que leis ordinárias. Portanto, em caso de uma lei processual colidir com a de um tratado, "a antinomia deverá ser solucionada pelos critérios tradicionais da especialidade e antiguidade"¹⁰.

 

3. Breve histórico

O direito processual, no Brasil, foi regido pelo direito processual de Portugal durante a época em que o país era uma colônia. Mesmo com a Constituição de 1824, o processo no Brasil não se emancipou, visto que as disposições processuais ainda eram as mesmas que as de Portugal. Até a República (1891), as alterações processuais eram realizadas mediante Regulamentos Imperiais (em verdade, tratava-se de um "Código de Processo Comercial").

Esse Código de Processo Comercial era legitimado pelo Código Comercial, que determinava a atribuição do Rei para legislar sobre processo. O Código de Processo Comercial é chamado de Regulamento n.º 737, que era, em verdade, um decreto¹¹. Com a Constituição da República, em 1891, os Estados receberam competência para legislar sobre Processo, mas nem todos o fizeram, portanto, seguiu valendo o referido Regulamento.

Muitos outros Códigos, como o Código Filipino (Ordenações do Rei de Portugal, que já era uma compilação das Ordenações Manuelinas, da época em que Portugal estava sob domínio espanhol), regiam vários aspectos do Direito Processual, sobre os quais o Código silenciava (como a ação rescisória)¹². Com a confusão devido à pluralidade de Códigos Processuais vigentes no Brasil, finalmente, em 1934, a Constituição determinou a unidade do Direito Processual, atribuindo à União a competência para regular a matéria.

Porém, o Código de Processo Civil nasceu — como muitas das legislações até hoje em vigência — após o Golpe de Getúlio Vargas, tendo sido confeccionado por juristas de sua confiança, e mesmo não sendo da autoria do jurista Francisco de Campos, muito do CPC de 1939 foi redigido de tal modo devido a ele. O Código significou, pela primeira vez, a independência e organização processual do Brasil, ainda que dispusesse de categorias pouco desenvolvidas em relação a experiências passadas. Muitos dizem que o Código era confuso, obscuro em sua terminologia, que gerava grande embaraço na prática e na doutrina.

O Código sofreu algumas alterações por leis e decretos-leis, mas foi substituído realmente em 1973 pelo Código Buzaid. Alfredo Buzaid recebeu de Jânio Quadros a oportunidade de apresentar uma revisão ao Código anterior, mas ele preferiu não fazê-lo. Em 1964, o anteprojeto já havia sido enviado ao Ministro da Justiça, e só foi submetido à Câmara em 1972, com algumas alterações.

O Ministro da Justiça à época não ficou contente com as alterações, o que levou o Código de volta para o Congresso, em sua forma original, garantindo a unidade e harmonia do Projeto. Apesar de as instituições do Código serem constantemente elogiadas — e em certa medida se afirma que o atual Código não fez mais do que reproduzi-las — , alguns criticam a separação do Direito Processual Civil do Trabalhista¹, o que impede, segundo argumentam, uma verdadeira "unificação". 

No texto seguinte, abordar-se-ão os princípios do Processo Civil, dando continuidade ao estudo introdutório ao processo civil brasileiro.

 


Notas e referências

¹ BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 537.

² COSTA, Eduardo José da Fonseca. O processo como instituição de garantia. Revista Consultor Jurídico, São Paulo, 16 nov. 2016. https://www.conjur.com.br/2016-nov-16/eduardo-jose-costa-processo-instituicao-garantia. Acesso em: 31 mar. 2022.

³ Ibid.

⁴ ASSIS, Araken de. Processo civil, vol. 1. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 14.

⁵ Ibid., p. 17.

⁶ Ibid., p. 18.

⁷ Ibid., p. 19.

⁸  MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo processo civil brasileiro: exposição sistemática do procedimento. 29ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 3.

⁹ NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 10ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007,  p. 709.

¹⁰ COÊLHO, Marcus Vinicius Furtado. Arts. 13, 14 e 15 do CPC - Aplicação das normas processuais. Migalhas, Ribeirão Preto, 07 maio 2019. https://www.migalhas.com.br/coluna/cpc-marcado/301790/arts-13-14-e-15-do-cpc-aplicacao-das-normas-processuais. Acesso em: 31 mar. 2022.

¹¹  IMPÉRIO DO BRAZIL. Decreto nº 737, de 25 de Novembro de 1850. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/historicos/dim/DIM0737.htm. Acesso em: 31 mar. 2022.

¹²  CUNHA, Maurício Ferreira. Aspectos Históricos da Ação Rescisória. In: COSTA, Eduardo José da Fonseca; ATAÍDE JR. Jaldemiro Rodrigues de; PIMENTEL, Alexandre Freire; COSTA FILHO, Venceslau Tavares (coord.). História do Processo. São Paulo: ABDPRO, 2018, p. 417-442.

¹³  PINTO, Almir Pazzianotto. O novo Código de Processo Civil. Migalhas, Ribeirão Preto, 21 jul. 2015. https://www.migalhas.com.br/depeso/223802/o-novo-codigo-de-processo-civil. Acesso em: 31 mar. 2022.

¹⁴ Ibid.